PEQUIM (AP) — Ela é uma atleta excepcional que já ganhou medalhas nas Olimpíadas de Inverno de Pequim. Mas o intenso fascínio despertado pela história de Eileen Gu ameaça ofuscar tudo que ela faz nas pistas de esqui.
Enquanto a esquiadora de estilo livre corre atrás do ouro nas montanhas a noroeste de Pequim, diversas narrativas conflitantes sobre ela ganham tração da Califórnia à China.
Em algumas, a esquiadora natural de São Francisco, nos EUA, compete na equipe chinesa para conseguir contratos publicitários mais lucrativos. Em outras, ela traiu os Estados Unidos, onde nasceu e cresceu, para esquiar pela China, o país de origem de sua mãe.
E uma terceira: ela era jovem demais para tomar a decisão de “abandonar” os Estados Unidos em prol da China, onde um único passo em falso poderia levar o governo repressor a restringir sua liberdade de locomoção ou de expressão.
A atleta de 18 anos, por sua vez, diz querer inspirar as meninas na China, onde há poucos exemplos femininos nos esportes.
O frenesi para “explicar” a escolha de Gu reflete os preconceitos e as falhas de compreensão que existem nos EUA sobre a identidade asiático-americana.
Ela tem vínculos realmente fortes com a China, como muitos outros na diáspora chinesa, que aproveitam as oportunidades e os recursos tanto nos países ocidentais onde foram criados, quanto na China continental cada vez mais rica.
“Ela representa uma nova tendência”, diz Yinan He, professora adjunta de Relações Internacionais na Universidade Lehigh, em Bethlehem, no estado da Pensilvânia, “simplesmente porque a China se tornou tão rica, poderosa e atraente, e está criando oportunidades que não estão disponíveis para os imigrantes aqui.”
Gu está numa situação especialmente favorável para aproveitar essas oportunidades.
Seus avós, engenheiros que se aposentaram nos ministérios do governo chinês, faziam parte da elite profissional. Sua mãe, Yan Gu, de 58 anos, foi embora da China nos anos 1980 para fazer pós-graduação nos EUA, e agora trabalha como investidora privada com foco na China, de acordo com o LinkedIn. Seu pai nunca foi identificado publicamente.
Gu foi criada com padrões de classe média alta e educada em escolas particulares nos Estados Unidos, e diz que se sente igualmente confortável em ambos os países. “Quando estou na China, sou chinesa”, disse ela ao Canal Olímpico em 2020. “Quando estou nos EUA, sou americana.”
Muitos imigrantes e seus filhos sentem essa dualidade. Poucos podem vivê-la.
”É meio irônico, porque em metade dos nossos casos, as pessoas usam um discurso anti-China e nos dizem para voltar para casa. Eles dizem para nós, ‘Você não pertence a este lugar. Nós não aceitamos você.’ E agora é como o oposto: ‘Por que você não está representando o seu lar?’“diz Russell Jeung, professor de Estudos Asiáticos-Americanos na Universidade Estadual de San Francisco. “Então, de qualquer forma, nós perdemos.”
Num mundo onde os atletas de elite cada vez mais cruzam fronteiras para competir, porém, Gu não é tão fora do comum. Ninguém se preocupa com um lateral senegalês na Premier League da Inglaterra, ou um arremessador japonês na Major League de Baseball dos EUA.
Gu é apenas uma dentre os muitos americanos de origem asiática cujas histórias de imigração familiar estão sendo expostas nas Olimpíadas de Pequim. Nathan Chen, que ganhou uma medalha de ouro pelos EUA na patinação artística masculina, nasceu no estado de Utah, filho de imigrantes chineses. Chloe Kim, atleta do snowboard, que ganhou seu segundo ouro pelos EUA no halfpipe feminino, nasceu na Califórnia, filha de imigrantes coreanos.
O que torna Gu o objeto de tanto fascínio? É possível que ela seja a “tempestade perfeita” de características.
Ao contrário de muitos atletas que mudam de país para competir, Gu poderia tranquilamente ter entrado na equipe de esqui dos EUA – e isso talvez aumente o sentimento de traição. Seu trabalho como modelo para marcas internacionais como Louis Vuitton e Victoria’s Secret lhe dá mais visibilidade do que outros atletas.
“Ela recebe muita atenção por causa disso, porque há sempre um foco na feminilidade e na aparência das atletas mulheres”, diz Robert Hayashi, professor da Amherst College especializado em história asiático-americana e nos estudos do esporte.
Esse fascínio fica claro pelo volume de comentários que ela atrai nas redes sociais em ambos os países.
Uma postagem recente no Instagram, em que ela aparece no pódio depois de ganhar a medalha de ouro na prova de Big Air, recebeu 402 mil curtidas e 51 mil comentários. E o Sina Weibo, o similar chinês do Twitter, informou que seus servidores ficaram momentaneamente sobrecarregados pela idolatria à atleta após sua vitória.
Pode haver, porém, um lado sombrio desse fenômeno. Críticos chineses repreenderam Gu por não usar seu espaço na mídia para defender a liberdade na internet em um país onde o acesso dos cidadãos é extremamente restrito. Na terça-feira (15), um jornalista perguntou se ela estaria cedendo ao escolher a China, e ela desviou da resposta dizendo que usa sua voz o quanto pode.
“Veremos se a postura dela (...) será bem aceita aqui a longo prazo”, diz Ruy Ma, fundador da consultoria de investimento Tech Buzz, com sede em São Francisco, e que imigrou da China para os EUA em 1989, ainda criança. “Certamente não parece ser aceita por muitos americanos no momento.”
Gu também representa o quanto a migração da China para os Estados Unidos mudou drasticamente. Enquanto muitos continuam a migrar para trabalhar em empregos mal-remunerados nos EUA, eles estão aos poucos sendo ultrapassados pelos migrantes com flexibilidade e recursos para passar férias na China e manter contato regular com a família de origem. Esses migrantes têm mais chances de serem biculturais e abraçarem sua herança abertamente, ao contrário do que ouviram – e aceitaram – as gerações anteriores, de que o preço da aceitação era a integração.
“Há benefícios em ser chinês e se envolver com a China, o país e a cultura”, diz Ma.
Scott Kennedy, consultor sênior e especialista em China no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais em Washington, considera que a história de Gu mostra que as complexidades de um mundo globalizado nem sempre se alinham perfeitamente à visão geopolítica.
“A história dela demonstra os benefícios, o valor, as oportunidades que decorrem de um mundo interconectado”, diz. “A medalha de ouro pode entrar na coluna da China do quadro de medalhas. Mas o sucesso dela é global.”
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Har escreve de São Francisco. Contribuíram para esta matéria Rhonda Shafner, da área de pesquisa da AP em Nova York, Joe McDonald, jornalista da AP em Pequim, e Eddie Pells, jornalista da AP em Zhangjiakou, China.
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Mais Jogos Olímpicos de Inverno na AP: https://apnews.com/hub/winter-olympics e https://twitter.com/AP_Sports
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Esta matéria é uma versão resumida. A versão integral foi originalmente publicada em inglês no dia 15 de fevereiro de 2022.
Por Janie Har E Sarah Dilorenzo , The Associated Press